sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Ensaio IGrupo Poeco – Só Poesia, janeiro 1980

Lembrança
O eu profundo dorme
como dorme
a tua terra escarlate.
Não é mais o sonho
que suspira:
é o ardor de uma
febre interminável.
A tinta que de roxo
tinge o sangue,
é a dor de uma
memória milenar.
Fosse o vento a saudade
que me leva,
restariam folhas verdes
pelo chão,
sobre um tempo onde a vida
passa ao largo.

14/09/1979


Ensaio II
Grupo Poeco - Só Poesia, março 1980

Brinquedo
Fantasio-me de rainha
para que brinques comigo.
Faço-me tua bailarina
para tuas noites de insônia.
Dispo todos os trajes
e torno a colocá-los
e faço de conta
que sou mil mulheres diferentes
para que tentes descobrir
minha face verdadeira.
Depois, cansada de brincar contigo,
lavo do rosto todas as máscaras do sonho.
Mostro-me serena e sorrio.
Torno-me tua
ao descobrires tua face
refletida em mim.


Prenda

Carrego o beijo à boca,
um suspiro e nada mais.
Talvez um sorriso
entremeado de sono
e prazer.
Talvez no rosto
eu tenha a marca
do último carinho.
Talvez no cheiro da pele
tenha ficado um pouco
do teu.
E perdida,
deito-me com todos os sonhos
que tenho por ti.
Remexo na terra fresca
e prendo-me contigo,
esperando o amanhecer.


Roda gigante

Entardeceu
sobre o parque.
Acenderam-se as luzinhas
colorindo
cada pedacinho de brinquedo
e os rostos das crianças,
das velhinhas,
dos namorados.
E eu brincava
sozinho
de girar na roda gigante,
vendo a vida girando
no meu coração.


Credo
Há motivo para o mundo.
Que permanece mudo.
Como um deus em oração.



Ensaio IVMassao Ohno Studio, dezembro 1980

Passagem

Lavo da alma
a poeira negra e avarenta,
lavo dos olhos
as cinzas
que se depositaram
nos cílios
e dos cabelos,
as fibras tênues
da madrugada.
Lavo o corpo
como se quisesse banhar-me
em perfume,
para existir ao vento
como aragem de outono.
Sorvo com o tempo
a saudade que ficou
sobre as coisas macias
e sofridas.
E num derradeiro gesto de afeição,
deixo todos os momentos passados
como última visitante do vazio.

Serpente

Rogo a praga
sobre teus cabelos
e a praia que visitas
já não te aguarda.
Porém, nesta cidade
não há lugar.
Desapareço no cinza
e em tudo
estás ausente
Longe e antiga menina.


Momento interior

Possuo-te menos dolorida
que da última vez
e nas ternas carnes
de teu colo
recebo-te calma e ensimesmada.
Abraço-te
e perco teus olhos em mim.
Quão distante estás!
Quão perto de ti!
E mesmo assim
estás comigo,
mais suave
que da última vez.


Poética

Falsas pedras
relambórias memórias
triste
como um mar deserto.
Trôpegas larvas
de mariposas decaídas
em borboletas ocidentais.
E, em tudo o mais,
vazio
como um mar aberto.


Notícia em jornal

Em letras vermelhas garrafais
estampava-se a dor milenar
– É a guerra! gritava um.
–É a fome! o outro respondia.
Desfazia-se na tarde já fria
o olhar das pessoas que passavam.
E entre brados de euforia
clamavam com o ódio
acirrando as sobrancelhas:
– O ouro está acabando, tornava o primeiro.
E a menina gritava ao povo da rua
palavras duas de fazer mal.
– É preciso lutar, é preciso lutar,
é preciso...!

Nos jornais da cidade,
em grandes letras vermelhas,
derramava-se o sangue
de outras tardes iguais...


Kaleidoscópio

Sou da cor da distância.
Distância que existe,
que inexiste,
que não existe mais.
Sou do tamanho da ausência.
Presença que se desfez
pranto que se desfaz.
Tempo do tempo
de tempo-será.
Sou o vento
corroendo a montanha.
Sou a montanha
corroída por mim.


Ensaio V
Grupo Poeco - Só Poesia, 1981
O contexto final de uma antologia poética é a revelação de seus espaços intercelulares e a poesia tomada como um todo, em variações tonais, transmite as nuances do processo em que estão inseridos os nossos poetas.
O exercício da poesia deve ser visto como fim em si mesmo, não colóquio achado ao acaso, mas narrativa do eu em suas dimensões totais, partindo para a mais inusitadas das viagens.
O surto poético em nossos dias assemelha-se aos despertar de toda uma geração, que, embevecida ou mal-amada, rompe com os mesmos signos com que se insurgiram tantas vozes, proféticas e temporais, aliadas ao desejo de arrebatar vida e seu significado, redescobrindo o poema como aliado aos ímpetos e pressentimentos.
Temos como resultado a ambição pela permanência, antes que passagem ingrata, de fixar-se como pólo dinâmico de uma estrutura singular.
Ensaio V traz a herança de dois anos, desde janeiro de 1980, quando lançou (-se) a primeira antologia poética (do Grupo Poeco - Só Poesia), mostrando o sinal de uma evolução gradativa em busca da própria poesia que impregna sua presença no cotidiano, como única forma possível de sobrevivência.
Estão todos incrustados no mesmo tempo, regidos pela ótica do renascer poético, tendo em comum a circunstancialidade premonitória como atributo do trabalho do poeta.

Thereza Christina Rocque da Motta
Outubro de 1981




Este é o caminho de todos que virão.
Cecília Meireles



Interlúdio

Revivo-te, eternidade,
em tudo que possuis.
Fel, dor, mágoa,
lágrimas de manhãs,
fomes saciadas em repasto,
e febre, delírio, cansaço.
Reverbero som e tua paisagem.
Fogo em extinção,
sal, açúcar, soluço, pranto.
Alegria trazida em mãos de orvalho,
calor dissipado de teu corpo ereto,
fantasias, fantasmas, tudo calado,
tudo mergulhado em breu.
Sê, bem-vinda,
aqui recomeço eu.